Tuesday, November 01, 2005

Um pequeno comercial


E quando for possível a gente faz mais resenhas.

Márquez e Vonnegut. Já que estou nesse "entre-guerras", vamos pegar pesado para um anaeróbico cerebral.

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Gabriel García Márquez é um daqueles escritores fodidos da América Latina. Eu pago um pau para esses caras desde que li na adolescência um livro chamado "A Estrada para San Martín". Mais maduro em relação aos livros-Malhação do Pedro Bandeira. Mas essa é a Major League, então vamos com algo mais pesado. Não, não é "Cem Anos de Solidão" nem "Memórias de Minhas Putas Tristes". O primeiro é muito lugar-comum para o autor, que não escreveu apenas aquilo de bom. E o segundo é caro demais. Ser um intelectual no brasil é como ser uma solitária no bucho de uma supermodel, como diria Furio Lonza. Você morre de fome - pelo menos foi isso que eu entendi do adágio. Por módicos dezoito pilas, vamos falar de "Ninguém Escreve ao Coronel".

O lugar, algum lugar da Colômbia, com alguma relação com a Macondo de "Cem Anos de Solidão" só que ainda não tinha sido escrito. O Tempo, muitos anos depois da Revolução. Tem um quê de relação com a realidade já que menciona "as noticias da Europa" sobre a nacionalização do Canal de Suez, no final dos cinquenta passado. A história: um oficial da antiga guerra civil colombiana espera na sua choupana da sua aldeia no meio do nada a carta que informa a sua pensão por veterano de guerra. Por quase vinte anos. Ele e sua mulher asmática (cujos nomes não são revelados pois, afinal de contas, não precisa já que poderia ser eu, ou você lá) comem o pão que o Diabo amassou tentando se virar com o que possuem e o que vendem. A única esperança dos dois é um galo de briga (que o diga Duda Mendonça, direto do país da piada velha) que pertencia ao filho já finado. Que não é tão finado assim pelo que subentende a narrativa, mas é apenas um detalhe técnico. A questão aqui é como a vila toda se apóia no Coronel e no Galo, já que o Coronel é o dono do galo de briga mais promissor no "Mundo dos Esportes Gillette®" desde o Robinho do Santos. E como o olho dos donos engorda o gado, a mulher cai na real e vê a estúpida empresariagem esportiva que se exerce sobre o galináceo que tem tratamento de rei na casa do Coronel e tenta demovê-lo da idéia de continuar com essa palhaçada toda e tentar ganhar algum dinheiro de verdade por aqui.

A Carta, o Coronel e o Galo são os principais personagens dessa novela (que não é Romance por razões de retórica). A Carta que nunca chega é como um sinal de deus e dos homens de que ainda não é a hora, tal qual a provação de Jacó na casa de Labão tendo que trabalhar sete anos para casar-se com uma baranga e mais sete para levar aquilo que ele queria (na lenda da bíblia); o Coronel que age como o povo que espera a ajuda divina e do governo da America Latina para sair de seu atoleiro financeiro, moral e psicológico (já que o Coronel em várias passagens se vê com flores, cogumelos e demais alucinógenos nas tripas e dá suas viagens na maionese); e o Galo que é a única chance de redenção possível, que é sendo esportista e fugir daqui, dando uma boa vida aos progenitores no processo (aqui são os novecentos pesos que o Coronel sonha em tirar quando vender o Galo na Rinha de Janeiro). Em outras palavras, uma parábola política e antropológica das repúblicas bananeiras.

"Ninguém Escreve ao Coronel" foi levado aos cinemas já faz um certo tempo, passava até na Gazeta quando ainda tinham dinheiro para passar filmes e traz uma estética de peça de teatro com iluminação e tudo o mais, caso vocês sejam vagais a ponto de não conseguirem consumir meras noventa e quatro páginas (na edição da Sabiá, em 1969).

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Matadouro 5. Kurt Vonnegut.

Eu ainda não li os livros do Castañeda, sobre as pirações do cara na mescalina, só que eu acho que no confronto direto Kurt ganha. E com folga. Nosso amigo aqui foi um dos revolucionários da narrativa do romance americano no século XX (bem que poderia ter entrado como tema de TCC, né não?) mas antes disso, como todo bom americano, foi soldado. Na Segunda Guerra. E ainda de quebra viu o bombardeio de Dresden (que matou mais gente que as bombas atômicas sobre o Japão) em primeira mão. Decidiu colocar tudo isso no papel.

Só que não adianta você simplesmente colocar isso no papel. Vira apenas mais um sermão do tipo "oh, a guerra é o inferno" e você acha que está de frente a mais um pastor da Deus É Amor que de um escritor. Portanto, vamos fazer do "outro jeito". Imagine uma série de post-its. Aqueles que se usa para deixar recados ao redor do mundo. Então. Um livro inteiro de post-its narrativos. Uns pequenos, com menos de quatro sentenças, outros com quase seis, sete páginas. Todos eles não-lineares.

Pequenos telegramas da terra das idéias de Billy Pilgrim, personagem semi-autobiográfico que esteve na guerra como ajudante de capelão (oficial não-comissionado) e capturado pelos alemães. Viu Dresden se tornar uma paisagem lunar com poeira de ossos em toda a parte. Voltou para casa, se tornou optometrista, teve seu surto de veterano de guerra e se casou com uma gorda rica cujo pai também era optometrista (tem horas que Kurt trata os optometristas como uma etnia, como os muçulmanos, judeus, ciganos e demais minorias européias no Novo Mundo). Sofre um acidente de avião com seu sogro e outros optometristas e é o único sobrevivente. Se torna então palestrante de uma teoria de que existem aliens da Quarta Dimensão que podem viajar no tempo como se o tempo não fosse mais que uma paisagem onde podemos olhar o passado, o presente e o futuro a bel prazer. E nosso amigo consegue aprender o segredo de se deslocar no tempo e no espaço do mesmo jeito. Em um momento está dando uns malhos na sua mulher gordinha em algum lugar do meio-leste dos Estados Unidos. Vê uma lancha com um casal de ricos passando e resolve ir no banheiro. Então, volta para 1944, no campo de prisioneiros na fronteira da Tchecoslováquia indo dar uma bela obrada chapado de morfina na cabana médica.

Não existe uma única virada de roteiro em Matadouro 5. Você sabe desde o começo onde e quando cada coisa vai acontecer. Não sente pena nem ódio dos personagens. Não tem pena do soldado que é morto por tirar uma chaleira dos escombros, nem do companheiro de "POW Camp" que jura matar Billy Pilgrim e décadas mais tarde descobre que foi ele o assassino de Billy depois de uma palestra sobre os tralfamadorianos (os aliens que o abduziram e o estudaram num zoológico a milhões de quilômetros dali) em Nova Iorque. Você sabe do destino de cada um e apenas acaba repetindo com Billy Pilgrim sempre que algo de ruim (em geral a Morte) acontece com alguém: "Coisas da Vida". Acaba concordando com Pilgrim que não existe uma linha de momentos; que continuamos a existir em outros lugares além da morte.
Um jeito de ver o lado bom das coisas, sem aquela palhaçada gótica do Tim Burton e associados (nada contra Tim Burton, ele ainda fez o segundo melhor Batman do meio audiovisual, perde apenas para o Batiman Feira da Fruta na minha pobre opinião).